A UM (MEU) SAPATO ROTO
Aguenta-te lá oh sapato roto
Não queiras ser ainda mais maroto
Que sofro em meu orgulho, molestares;
Até estou ficando atrapalhada
E ganharei rubor, se na calçada
Os meus dedos, de ti, tu libertares…
Tenta ser solidário com meus ais
Não me dando receios, ‘inda mais;
Que se parar aqui o teu rasgar
Poderei correr léguas por demais
Ou saltar muros, grades e quintais
Co’a sorte de meus dedos, não mostrar.
Por isso, tu com força de vontade
E eu procurando ter grande à-vontade
Iremos embair a multidão;
E graças a teu gesto de amizade
Um certo ar de rainha, então me invade
E sendo tu, o meu nobre brasão!
É que esta minha pobre alma penada,
Suspeita, fica mesmo agonizada
Com receio de mais te ires rasgar;
Não frustres esta amiga devotada
Que fica veramente envergonhada,
De ter – com tempo assim – dedos ao ar
Terra percorreste, em tempo passado
Calçado, lama – lixo foi calcado
(Já foste novo, airoso e muito forte)
E agora amigo, sei que estás cansado,
Mas por favor, esquece isso um bocado
E não queiras ceder na rua à morte.
Depois por recompensa, atribuir-te-ei,
O merecido Céu, que reservei:
Por o empenho teu, assim profundo
Oh meu sapato roto, guardar-te-ei
Num lugar, onde só eu te verei
E por tal, escondido deste mundo!
1971
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